"A profundeza abissal da palavra declamada
ecoa nítida na linguagem abstrata
das mãos (gestos prontos),
e o atrito dos dias confunde as cicatrizes do tempo,
derramado sobre a mesa o poema
ignora nas pálpebras o pesadelo do sonho"

(Júlio Rodrigues Correia)





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30 de set. de 2010

(...)


Não tinha noção, nem dimensão do que era o esperar, emoção de dor interminável. Não havia perdido nada, até então, que não pudesse de novo ver, palpar, tocar, um novo ressurgir, uma aparição, reencontro.
Que fosse banal como o último tocar, o último olhar, mas que viesse assim falar quantas vezes pensou em vir e não pode por qualquer razão... Contar histórias da própria imaginação, contornar desafetos, mentir uma saudade... Mas que viesse, pois espero ouvir até outro amor. Seria bom para acabar com esses dias que conto, as noites de insônia, o vazio da minha alma. Seria alívio, seria constatação que esse tempo, a espera foi mínima, uma imaginação, um purgatório de rosas e orações. Mas a dimensão existe e ela se torna gigante, enche coração de agonias, as mãos não sabem onde ficam, bobas no vazio dos dias... Essa noção de ausência faz de ti presente, sem rosto, pois não consigo ver um rosto bom, alvo, alegre, pois a última visão foi encarnada de tristeza, sorriso curto, preocupação desnecessária, pois ali estava mentira sem mostrar a cara coração. Ficou a voz tremula quase afônica de alguém que parecia sofrer...
Salve-me, por favor, dessa incrédula vida de pés em nuvens, em pisar em flores e me ferir em espinhos alheios, trafegar apressada sem ouvir, sem nada buscar, a não ser a resposta a pergunta que não te fiz. Só esse rosto de inúmeras máscaras poderá me tirar dessa aflição, essa prisão de sentimentos... Haverá condição humana todo o tempo? A minha, a tua, aos que aqui vêem uma ludibriada que se entusiasma com o barco voltando, o ipê no seu agosto de mais um ano, dorme ao lado de um telefone mudo, olha as crianças crescendo, o sinal fechando, abrindo para passar todas as ilusões..., entardecendo a cada fim do dia sem ao menos a luz de um abajur, recordando como um filme a nossa história sem fim... morando nas paredes que batem como coração... até desmoronar de exaustão essa solidão, sem ter mais qualquer noção...




cintia thomé

(exercícios - 1980)
















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Pintura (detalhe) Cíntia Thomé

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