"A profundeza abissal da palavra declamada
ecoa nítida na linguagem abstrata
das mãos (gestos prontos),
e o atrito dos dias confunde as cicatrizes do tempo,
derramado sobre a mesa o poema
ignora nas pálpebras o pesadelo do sonho"

(Júlio Rodrigues Correia)





.

14 de fev. de 2008

EU ACONTEÇO



EU ACONTEÇO

Eu aconteço
No silêncio que ensurdece tuas veias
No teu hálito de ervas daninhas das dores de teu mundo
Na maresia que molha teu ser arenoso
No céu turmalina que declamas paixões efêmeras
No derrame líquido do masturbar das palavras vãs

Eu aconteço
Nos dois frutos imaginários que apertas em tuas mãos
No teu peito cheio reclamante
No incenso de rosas e cravos que aspiras
Na carnuda pétala da minha boca na tua
Nos veios em teu rosto em rio caudaloso

Eu aconteço
No sol maior que te rasga o braço
No querer de meus dedos em teu ventre
No escorregar do limbo de meus dentes
Na tua nuca arrepiada quando o passarinho canta
Na floresta do desejo recolhido

Eu aconteço
Nos delírios albergados de tua alma
No prazer das manhãs cortando teu sono
No papel de seda que embrulhaste as tuas loucuras
No santuário infernal que jogaste teu preço
No buscar dos erros confessos que odeias

Eu aconteço
No contorno que faz de meu corpo no teu ar pesado
Na queixa da insatisfação quase perene
Nas viagens da barca sem remo e direções
No perder da feminina folha lasciva dos teus outonos
No precipício de teu sofrimento incolor

Eu aconteço
Nas tuas pálpebras algemadas às minhas
No teclado preso em tua boca rasgada
Na criança que Baco faz de ti
No par de gaivotas e quatro asas na chuva
No beco da tua existência sem resquícios

Eu aconteço
No início da dor do querer com todas as putas
No final em frenesi dos ponteiros juntos
No ejacular precoce da tua carne derrocada
No quarto, na sala de estar, no banheiro das mentiras.
No arrependimento em tormento

Eu aconteço
Na ferida de minha cavilha em teu lembrar
Na sincronia feroz com prazo do tempo acabado
Na demência, na adrenalina catalisada.
Na luz em movimento que serpenteia teus pelos
No clamor que fazes de mim, no horror!

Eu aconteço
Na boca do azar de tuas palavras
Na tua morte, no teu pecado.
No amor ardente que te cegou,
Eu vivo.
Eu aconteço!


Cíntia Thomé

.

Nenhum comentário: