"A profundeza abissal da palavra declamada
ecoa nítida na linguagem abstrata
das mãos (gestos prontos),
e o atrito dos dias confunde as cicatrizes do tempo,
derramado sobre a mesa o poema
ignora nas pálpebras o pesadelo do sonho"

(Júlio Rodrigues Correia)





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1 de out. de 2007

ÚLTIMO GRITO






ÚLTIMO GRITO

Não pude gritar
Nas aparências que cometi
Nas cortinas negras das portas que vi
Resignar-me sempre com polidez
Diante das ilusões, desilusões, no inacreditável;
Partes de mim fugindo nas frestas que não vi
Impotência da boca, morder dos lábios.
Livres foram e serão as lágrimas
Liberdade inteira, só minha.
Ninguém poderá tirá-las de mim, detê-las.
Sou livre!
O livre marejar dos suplícios calados
Rosto ultrajado em inalterável palidez
Construí prédios, cidades inteiras submersas no corpo;
Amores de concreto... Ocos, frívolos, amores fugidios;
Secretos em barriga vazia impotente
Território imaginário, meu... Só meu!
A quimera da vida vadia dentro de mim, sem nexo...
Complexos, anexos, em plexos, convexos...
Rústicas mesas verdes, campos verdes...
As cartas desapareceram,
Sem números no jogo de fichas lisas e impotentes
A roleta do tempo líquido de um amor perdido
Rei, rainha, damas, cavalos, vassalos... Jogo vil.
Chegaram flores ainda não paridas,
Havia dentro de mim a esperança sem dor
Coração de terra adubada por amor
Uma vez paixão incendiada sem pudor
Todas as paredes e janelas de meu ser
Não gritavam em socorro, pois eu não queria o frio...
Corrompida vida sem grito abrasado
No bater e voltar solitário
Amores que tive... Pouco de mim sobrou.
Papel arranhado por traças... (coisas) baratas
Caminhando eu ao meio fio, ao lixo...
Ao lixo dos sozinhos, ao excremento infame dos sanitários...
Flor caída, pálida, amarelecida, rejeitada.
Tempo que não gritei
Dentes cerrados, grades de minha voz potente,
Voz aprisionada, rouca, doida, louca!
Catarei fragmentos da alma
Na colcha de retalhos de minha cama
Cama do meu mundo inteiro incompetente
Cobrindo-me impotente, excluída, maldita,
Coitada, reprovada, abandonada, castigada...
Terei asas em outros destinos?
Dormindo. Sonhando... Morrendo mais um dia.
Sonolenta. Acordada, em noite alta,
Grito!
O coração em desatino diz:
Veja... Veja estou brotando flores!
Flores! Flores! Flores!
É possível?


Cíntia Thomé

Direitos Registrados


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