"A profundeza abissal da palavra declamada
ecoa nítida na linguagem abstrata
das mãos (gestos prontos),
e o atrito dos dias confunde as cicatrizes do tempo,
derramado sobre a mesa o poema
ignora nas pálpebras o pesadelo do sonho"

(Júlio Rodrigues Correia)





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17 de jun. de 2008

ARDENTE CAMALEOA


ARDENTE CAMALEOA

Sempre vou arder
Arder a tudo que vi
A tudo que a memória me traga
Arder no gole da wodka que refrigera o traidor tempo
Vou arder banhando o rosto com água gelada
Na essência da espuma, de seu som que conversa comigo
Vou arder na leitura matinal, nas garrafais palavras
No papel que sangra quase o fim, mas ainda começo
Vou arder nas paredes mudas, portas escancaradas
Nas janelas que vem a brisa, no degrau da escada
Vou arder ao visitante sábio que sempre me chamou
Vou arder engolindo as maçãs do desejo
Nos varais, em cada roupa colorida
Nos lençóis que ecoam do vizinho
No fog de Bristol, na casa que abriguei
Vou arder aos beijos que dou e não tenho
No vento dos escoceses campos, no gosto das azeitonas
Vou arder no cigarro ao chão,
No cais, na barca que não me levou...
No espelho d’água dos rios
Vou arder aos riscos dos luminosos, neon
No cinema Lumière... Gérard Depardieu, Costa Gravas
Dancing Days...
Nos violinos e guitarras, cigarras...
Na gravata do poder, nas anti-leis
Nas flores das primaveras partidas em minha mão,
Vou arder nos assassinos do amor
Nas grades dos jardins que choram por mim
Vou arder com a fumaça, do fogo que crispa canaviais
Vou arder no coração das fechadas florestas, nas pistas
No sexo das leoas, no casulo das borboletas
Nos aquários secos, oceanos de todas as almas
Arder na noite vadia, real estrela...
Na escuridão que ninguém conseguirá apontar-me
Ardente camaleoa
Arder na palavra que todos haverão de dizer
Quando outonos chegarem...
Folha...



Cíntia Thomé

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